Modelo: Nuno Tavares
Foto tirada por: Rafaela Tatini
Sitio: Fabrica abandonada em Cacilhas
Máquina: fujifilm finepix s3400
Efeitos: Preto e Branco.
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TABACARIA
Não sou nada.
Nunca serei
nada.
Não posso
querer ser nada.
À parte isso,
tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu
quarto,
Do meu quarto
de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem
quem é, o que saberiam?),
Dais para o
mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua
inacessível a todos os pensamentos,
Real,
impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério
das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a
pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a
conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje
vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje
lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse
mais irmandade com as coisas
Senão uma
despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de
carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da
minha cabeça,
E uma
sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje
perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje
dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do
outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de
que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz
propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem
que me deram,
Desci dela pela
janela das traseiras da casa,
Fui até ao
campo com grandes propósitos.
Mas lá
encontrei só ervas e árvores,
E quando havia
gente era igual à outra.
Saio da janela,
sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
Que sei eu do
que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que
penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que
pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste
momento
Cem mil cérebros
se concebem em sonho génios como eu,
E a história
não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá
senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio
em mim.
Em todos os
manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não
tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em
mim...
Em quantas
mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta
hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas
aspirações altas e nobres e lúcidas —
Sim,
verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —,
E quem sabe se
realizáveis,
Nunca verão a
luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para
quem nasce para o conquistar
E não para quem
sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado
mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado
ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito
filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e
talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não
more nela;
Serei sempre o
que não nasceu para isso;
Serei sempre só
o que tinha qualidades;
Serei sempre o
que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a
cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz
de Deus num poço tapado.
Crer em mim?
Não, nem em nada.
Derrame-me a
Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a
sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que
venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos
cardíacos das estrelas,
Conquistámos
todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e
ele é opaco,
Levantámo-nos e
ele é alheio,
Saímos de casa
e ele é a terra inteira,
Mais o sistema
solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come
chocolates, pequena;
Come
chocolates!
Olha que não há
mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as
religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena
suja, come!
Pudesse eu
comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e,
ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para
o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos
fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia
rápida destes versos,
Pórtico partido
para o Impossível.
Mas ao menos
consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos
no gesto largo com que atiro
A roupa suja
que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa
sem camisa.
(Tu, que
consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega,
concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia
romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de
trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do
século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote
célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê
moderno — não concebo bem o quê —,
Tudo isso, seja
o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é
um balde despejado.
Como os que
invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e
não encontro nada.
Chego à janela
e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas,
vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes
vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães
que também existem,
E tudo isto me
pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é
estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei,
amei, e até cri,
E hoje não há
mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um
os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez
nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é
possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas
existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo
para aquém do lagarto remexidamente.
Fiz de mim o
que não soube,
E o que podia
fazer de mim não o fiz.
O dominó que
vesti era errado.
Conheceram-me
logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis
tirar a máscara,
Estava pegada à
cara.
Quando a tirei
e me vi ao espelho,
Já tinha
envelhecido.
Estava bêbado,
já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a
máscara e dormi no vestiário
Como um cão
tolerado pela gerência
Por ser
inofensivo
E vou escrever
esta história para provar que sou sublime.
Essência
musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera
encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse
sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos
pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete
em que um bêbado tropeça
Ou um capacho
que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da
Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olhou-o com o
desconforto da cabeça mal voltada
E com o
desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e
eu morrerei.
Ele deixará a
tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura
morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa
altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em
que foram escritos os versos.
Morrerá depois
o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros
satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará
fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma
coisa defronte da outra,
Sempre uma
coisa tão inútil como a outra,
Sempre o
impossível tão estúpido como o real,
Sempre o
mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou
sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem
entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade
plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me
enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar
escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um
cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no
cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo
como uma rota própria,
E gozo, num
momento sensitivo e competente,
A libertação de
todas as especulações
E a consciência
de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me
para trás na cadeira
E continuo
fumando.
Enquanto o
Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse
com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse
feliz.)
Visto isto,
levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da
Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o:
é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da
Tabacaria chegou à porta.)
Como por um
instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus
gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me
sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
15-1-1928
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).
- 252.
1ª publ. in
Presença, nº 39. Coimbra: Jul. 1933.
Em Arquivo Pessoa: Obra Édita
http://arquivopessoa.net/textos/163
[fev.2013, 16h 57m)
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